Tradition versus Innovation. Art and Design Practices for Holistic Sustainability The Insular Snow Project

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Ana da Silva
https://orcid.org/0000-0002-8139-1706

Abstract

Taking the Insular Snow project as a case study, I intend to show how relational art and design practices can contribute to social creativity and sustainability in the way that they run counter to the innovation/tradition dichotomy.  A product of the Western historical narrative, the tradition/innovation dichotomy equates Western modernity as the universal telos and, concomitantly, everything that resists its conversion - the different knowledges or cultures - as "non-modern", "traditional". Within this narrative, the "modern" is conceived as the acceleration of change and the advancement in time through it, and the "traditional" as the static, fixed in time. In this context, the tradition/innovation dichotomy fosters an atomistic view of the individual context, separate from nature and the cultural context, contributing to the naturalization of social differences and an anthropocentric view of the world, and thus being at the heart of the exploitation of people and nature.


I argue here that change and innovation do not imply the overcoming of the traditional by the modern but that, on the contrary, both constitute a flow that feeds the tangible and intangible cultural heritage as part of a political process of reinterpretation and creation of historical meaning.

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1. Introdução

No contexto da modernidade, as práticas de arte e design têm experimentado uma evolução significativa, onde a dicotomia tradição/inovação desempenha um papel central. Desde o virar do milénio, assistimos a um aumento expressivo de projetos sociais que incorporam práticas colaborativas, refletindo uma tendência global. Exemplar desta tendência é o projeto Living Form da Creative Time, que consiste num arquivo digital de 350 projetos sociais realizados entre 1991 e 2011, abrangendo uma diversidade de áreas e ilustrando a intersecção crescente entre arte e design. Projetos emblemáticos como "Mobile Homestead" de Mike Kelley, "Young New Yorkers" de Rachel G. Barnard, "DREAMER Kites" de Miguel Luciano e "Futuros IDs" de Gregory Sale destacam esta intersecção, oferecendo exemplos concretos de como a arte e o design podem ser utilizados para abordar questões sociais complexas e promover a transformação social.

Este artigo centra-se no projeto NEVE INSULAR, uma iniciativa da artista/investigadora Rita Rainho e da designer de moda Vanessa Monteiro. Surgido em resposta ao desafio da URDI - Feira do Artesanato e Design de Cabo Verde em 2018, o projeto propõe reinventar a panaria cabo-verdiana, um elemento-chave do património cultural imaterial de Cabo Verde, através de novos suportes e abordagens interdisciplinares. O projeto visa contribuir para uma sustentabilidade holística, integrando preocupações económicas, ecológicas, sociais e culturais. A sustentabilidade social, um pilar frequentemente negligenciado, é essencial para alcançar uma sustentabilidade mais abrangente. A Agenda da ONU para 2030 enfatiza a necessidade de padrões sustentáveis de produção e consumo, destacando a interconexão entre os setores económico, social e ambiental. Neste contexto, o projeto NEVE INSULAR adota uma abordagem holística, enfatizando a importância do fortalecimento do tecido social para enfrentar os desafios da sociedade contemporânea.

O projeto inicia-se com a figura estilizada da flor de algodão (capulho), um símbolo central nos padrões do panúditéra. Este início simbólico reflete não apenas o renascimento da panaria cabo-verdiana, mas também a integração de diferentes dimensões da sustentabilidade. Segundo Rita Rainho, o projeto transcende a criação autoral e o objeto de design, promovendo uma compreensão partilhada do passado e das heranças esquecidas, e abrindo caminho para um futuro sustentável do algodão insular. O título "NEVE INSULAR" simboliza metaforicamente a brancura do algodão com o contexto histórico do trabalho de plantação, representando a descolonização das mentes. Rainho destaca a importância de compreender o papel das plantações de algodão para os "monocultivos da mente", uma metáfora para a supremacia ocidental reforçada pela mercantilização de objetos e pessoas.

O projeto desafia o individualismo nascido no Renascimento e perpetuado no Romantismo, refletindo-se numa noção linear do tempo, conduzida pela construção dicotómica de tradição e inovação. NEVE INSULAR ecoa o legado das práticas de arte participativa, exemplificado pelo projeto 'Culture in Action' de Chicago, que estabeleceu um precedente para o envolvimento comunitário e a mudança social na arte. No âmbito do design, teorias como o "Design for the Real World" de Papanek e a sustentabilidade social nas práticas de design de Manzini fornecem alicerce teórico para a abordagem do NEVE INSULAR. Os princípios de co-design, destacados por Sanders & Stappers, e a visão de design como ação social transformadora, defendida por Thorpe e Simon, alinham-se com a metodologia do projeto. A análise aqui apresentada prepara o terreno para explorar "A Hierarquia do Valor Global" e a "Criatividade Social", contextualizando o projeto NEVE INSULAR no discurso mais amplo de arte, design e identidade cultural. Uma breve visão histórica do pano cabo-verdiano será também abordada, iluminando a sua importância.

2 . Breve história da panaria cabo-verdiana

O arquipélago de Cabo Verde está localizado no Atlântico Norte, a cerca de 450 km da costa oeste africana, conforme descrito por Amarante (2012, p. 21), e é caracterizado por um clima saheliano. Com uma área territorial limitada (INE 2015) e aproximadamente meio milhão de habitantes, o arquipélago já era conhecido por vários navegadores antes de 1460, ano em que Portugal iniciou a colonização. Esta colonização foi marcada pela chegada de donatários e colonos portugueses, que estabeleceram a presença europeia e sustentaram a economia local por meio da mão-de-obra escrava, trazendo africanos de diversas etnias, principalmente da Guiné (Carreira, 1968, p. 21). Após séculos de colonização, Cabo Verde conquistou a independência em 1975 e estabeleceu um regime democrático, que se consolidou com as primeiras eleições pluripartidárias em 1991.

Figure 1. Pano d’Obra bicho, 78x172cm, Cabo Verde Luis Pavão, 2018, © DGPC.

O panúditéranão era apenas um produto econômico, mas também um veículo para o tráfico transatlântico de escravos, ligando Cabo Verde à Costa da Guiné e além. Com o tempo, este tecido assumiu um papel simbólico na resistência e formação da identidade nacional, especialmente após a independência. A revitalização da panaria cabo-verdiana, como parte do movimento de reafricanização, simbolizou uma reivindicação da identidade cultural e um desafio à narrativa colonial (…). No entanto, a produção de algodão enfrentou desafios significativos no século XIX, devido a secas e fomes, bem como a mudanças econômicas decorrentes da Revolução Industrial e do comércio global. A introdução do pano de algodão americano "paulino" marcou uma mudança na produção e no consumo de tecidos, impactando a tradição do panú di téra. Após a independência de Cabo Verde em 1975, o artesanato, incluindo a panaria cabo-verdiana, ganhou um papel central no movimento de reafricanização do país, impulsionado pelo PAIGC. Esta fase marcou um esforço deliberado para redefinir e fortalecer uma identidade nacional própria, distinta da herança colonial. Artistas influentes, como Luísa Queirós (1941-2017), Bela Duarte (1940-2023), Manuel Figueira (nasc. 1938) e outros, contribuíram significativamente para este movimento, fundando a Cooperativa Resistência e, posteriormente, o CNA-Centro Nacional de Artesanato. A missão do CNA, que mais tarde se tornou o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design, foi documentar e revitalizar a tecelagem tradicional cabo-verdiana, promovendo iniciativas para preservar e rejuvenescer esta prática cultural.

Durante o período que se estendeu de 1975 até as primeiras eleições pluripartidárias em 1991, o panúditéraevoluiu de um mero artefato cultural para um símbolo poderoso da identidade e africanidade cabo-verdiana. Este tecido tornou-se um emblema da imaginação e resistência do povo cabo-verdiano contra a opressão colonial, reafirmando a riqueza da sua herança cultural. Com o crescimento do turismo e da imigração após 1991, no entanto, observou-se uma mudança no discurso cultural em Cabo Verde. A noção de crioulidade, anteriormente usada para definir uma classe intermediária durante o colonialismo, passou a ser adotada pelas elites cabo-verdianas como uma forma de ascensão social e posicionamento no contexto global (…). Neste período, o panúditéramanteve seu status como um símbolo nacional, mas foi recontextualizado, transformando-se em uma forma de "branding" local que reflete tanto a herança cultural quanto a nova realidade socioeconômica de Cabo Verde.

Esta reinterpretação do panúditérailustra como práticas tradicionais podem ser adaptadas e redefinidas em um mundo moderno, desafiando a dicotomia entre tradição e modernidade. A evolução do panúditéradesde um produto de um passado colonial até um ícone de criatividade e inovação local ressalta seu potencial como veículo para a sustentabilidade e a criatividade social. A evolução da panaria cabo-verdiana, portanto, não somente narra uma história de resistência e adaptação, mas também abre caminho para novas aplicações e interpretações no campo da arte e do design contemporâneo. Ao reconhecer e valorizar essas práticas, podemos explorar como a tradição e a modernidade podem coexistir e enriquecer o património cultural, abrindo novas possibilidades para estudos futuros e aplicações práticas em diferentes áreas.

3. NEVE INSULAR – relações de cuidado

No contexto do projeto NEVE INSULAR, o panúditéra, além de representar a complexa história de Cabo Verde, serve como um ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre sustentabilidade, educação e inovação cultural. Este projeto não apenas revisita a história do tecido, mas também explora novas formas de pensar e aplicar práticas tradicionais no mundo contemporâneo. Enquanto iniciativa artística, o projeto NEVE INSULAR, não está na produtividade no sentido convencional, mas sim na preservação do património cultural, na estimulação da criatividade social, na sensibilização para as questões ambientais e no fortalecimento dos laços comunitários e com a natureza. Este modelo, que integra arte, sustentabilidade e educação, pode servir como uma inspiração para abordagens semelhantes em outros contextos, adaptando-se às especificidades culturais e ambientais locais.

Tanto no séc. XIX, quando Marx descreveu as condições de pobreza e exploração no mundo da produção têxtil em O Capitalismo, como atualmente − como notam as autoras do projeto − o “algodão permanece no topo da produção escrava massificada e estratificada. Daí que o ciclo de algodão seja abordado também pelas promotoras deste projeto como uma metáfora da mentalidade extrativista dos recursos naturais e humanos cuja massificação, ao nível planetário, teve início no colonialismo acoplado à revolução tecnocientífica europeia: a biodiversidade implica, neste contexto, também uma biodiversidade mental, um sair para além dos trilhos caminhados.

Neste contexto, uma mudança social para uma maior sustentabilidade implica um redesign do sistema, quer ao nível material como imaginário, uma compreensão da “diversidade e o plantio do algodão como um regresso à terra enquanto implicação na reimaginação da história a partir de lutas que herdamos e que nos implicam no questionamento nos modos de pensar, educar e viver” (Rainho, 2021, p. 58 ). Assim, as autoras afastam-se “de um produzir artesanato & design pensado no turismo, na ótica do design da identidade nacional através do vestuário, e dos objetos com aplicações do panúditéra”. Rita Rainho e Vanessa Monteiro focam-se sobretudo no processo a partir de três pilares, “a agroecologia, a educação e o campo artístico” (…), conscientes de que para “produzir de forma ecológica, sustentável e justa, é preciso criar uma rede solidária de sentido comum [que] só o tempo o pode construir” (Rainho, 2021, p. 59).

Apesar de a produção do algodão ter desaparecido do arquipélago, a sua utilização difundiu-se. Atualmente, para a produção, o fio de algodão tem de se importar da costa africana, do Gana, por exemplo. Ou seja, há um desperdício de recursos materiais e humanos na medida em que o desenvolvimento da produção de algodão poderia permitir uma fonte de sustento e evitar a poluição através dos combustíveis devido à compra de produtos longe do local de consumo.

Na Ilha de São Vicente não havia cultivo de algodão, apesar de hoje existir vegetação espontânea. Assim, o Projeto NEVE INSULAR começou de forma simbólica com uma plantação de algodão em parceria com a Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral – que cedeu o terreno – realizada em conjunto com o público da exposição da NEVE INSULAR na URDI - Feira do Artesanato e do Design de Cabo Verde, sendo que os visitantes eram levados para o local da plantação em autocarros organizados pelo CNAD. No local da exposição, estavam expostas fotografias de arquivo cedidas pela Associação dos amigos da Natureza intervencionadas por Rita Rainho e Vanessa Monteiro: sobre uns plintos, umas pequenas caixas de pedra, realizadas pelo artesão Albertino Silva, continham sementes que as pessoas levavam para a sementeira do algodão.

Posteriormente, NEVE INSULAR ganhou autonomia e, com o apoio do CNAD, organizou em 2019 um conjunto de oficinas de agroecologia com os agricultores da Associação Agropecuária do Madeiral e Calhau, com a colaboração de algumas escolas e vários apoios [2], oficinas que tiveram participantes de diferentes gerações e reuniam aos sábados (Fig. 2). Para os agricultores foi útil tomarem conhecimento de outra forma de cultivo sem pesticidas, enquanto as crianças beneficiaram do conhecimento do ciclo do algodão e da sua história enquanto parte do património material e imaterial de Cabo Verde. As oficinas eram dedicadas à transformação do algodão, desde tirar a semente, descaroçar, cardar, até fiar. Foram também realizados workshops de cardar e fiar com o artesão Marcelino Santos e de tingimento natural com a designer brasileira Flávia Aranha, tendo sido as peças resultantes dessas oficinas expostas na exposição “Países espelhados” no SESC – Serviço Social do Comércio, São Paulo, que focou os intercâmbios culturais entre os países africanos lusófonos. Anualmente, fazem várias colheitas de algodão onde participam também pessoas de várias gerações e contextos, pessoas que vivem nas cidades e agricultores.

Figure 2. Workshop realizado no âmbito do projeto NEVE INSULAR, 2019

Mais recentemente, em Abril de 2021, foi realizada uma formação do ciclo do algodão, no âmbito das ações “Fiando o algodão das novas gerações”, a qual contou com a participação do formador Marcelino dos Santos, das autoras de NEVE INSULAR e de oito formandos [3]. A formação teve a duração de um mês e passou por todo o ciclo do algodão desde a plantação até à tecelagem, no final os participantes partilharam a sua experiência com o público no Centro Cultural de Mindelo e foi apresentada a tapeçaria coletiva realizada, “Mon na cotton” (Fig. 4). São também realizadas formações dirigidas especificamente a mulheres no sentido de as emancipar. Entre junho e outubro de 2022 foi realizada, uma formação em agroecologia dirigida às mulheres do Vale do Calhau e Madeiral, Ilha de São Vicente, introduzindo os princípios da biodiversidade.

Figure 3. Colheita de 2021, no âmbito da visita de Ciclo de Algodão - curso de transformação de algodão. Imagem de NEVE INSULAR.

Para além de um espaço de formação, este projeto contempla também a realização de residências artísticas, reunindo artesãos e artistas. Em Agosto de 2021 foi realizada a residência artística Rberaque reuniu, para além das autoras do projeto, a designer têxtil senegalense Joana Bramble (nasc. 1976), um ceramista, Manú Soares (nasc. 1986), dois tecelões, Marcelino Santos (nasc. 1957) e Cândida Rocha e Rosilene Delgado que se dedica à transformação agroalimentar no Vale e que anteriormente tinha participado na formação em tecelagem. Nesta residência, a partir do mote da figura estilizada da flor de algodão (capulho) que servia, entre outros motivos, de padrão para o panúditéra, trabalharam o desenho e, com a participação do ceramista Manú Soares, realizaram loiças e moldes para queijo com a forma da flor de algodão, e food design com produtos existentes na Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral.

Figure 4. "Mon na Cotton", tapeçaria coletiva, grupo Ciclo do Algodão-projeto NEVE INSULAR, 2021. Imagem de NEVE INSULAR.

Figure 5. Residência artística Rbera, 2021.

Figure 6. Residência artística Rbera, 2021.

Verificou-se a existência de três teares: dois deles estiveram ligados com a mesma urdidura de forma que iam aproximando-se à medida que avançavam na tecelagem (Figs. 5 e 6). Esta partilha da urdidura, geralmente individual, simbolizou o princípio subjacente a esta residência: o conceito de conexão entre pessoas, matérias-primas e saberes. Conexão entre pessoas: habitantes da cidade e agricultores, sendo que, como sempre que há um evento do projeto, se vendem e promovem os produtos agroecológicos; entre matérias-primas: experimentaram-se várias matérias na tecelagem, como o carrapato, folha de bananeira, troncos, sisal, algodão e sementes; entre as pessoas e o território; e, por fim, entre saberes técnicos de vários domínios, de diferentes matérias-primas e sobre biodiversidade.

A ideia de desviar o foco do objeto para o processo é fundamentada por uma visão holística de economia circular como sistema de relações em que é necessário cultivar e cuidar das plantas à medida que elas crescem; como símbolo do cuidado, na apresentação final, foram mostradas as peças numa estrutura escultórica semelhante a um avental revestida com as bandas da tecelagem (Fig. 7).

Figure 7. "Avental", tecelagem escultórica coletiva, grupo da Residência Artística Rbera, 2022. Imagem de NEVE INSULAR

No contexto do projeto NEVE INSULAR, o panúditéra, além de representar a complexa história de Cabo Verde, serve como um ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre sustentabilidade, educação e inovação cultural. Este projeto não apenas revisita a história do tecido, mas também explora novas formas de pensar e aplicar práticas tradicionais no mundo contemporâneo.

Enquanto iniciativa artística, o projeto NEVE INSULAR, não está na produtividade no sentido convencional, mas sim na preservação do património cultural, na estimulação da criatividade social, na sensibilização para as questões ambientais e no fortalecimento dos laços comunitários e com a natureza. Este modelo, que integra arte, sustentabilidade e educação, pode servir como uma inspiração para abordagens semelhantes em outros contextos, adaptando-se às especificidades culturais e ambientais locais.

4. A hierarquia de valor global

Uma das viragens de paradigma que as autoras do projeto procuram estimular é a da noção da hierarquia entre designer/artista e artesão para uma noção de partilha de saberes. Assim, durante o processo, tiveram a preocupação de contrariar “a tendência da separação daquele que concebe, tradicionalmente o/a designer, e o artesão/ã, daquele que executa, segregações e hierarquias herdadas desde o princípio da Revolução Industrial” (Rainho, 2021a, 92).

Esta separação no relacionamento do designer, geralmente oriundo de contextos urbanos, com o artesão, como nota Murray “subscrever uma hierarquia que coloca ênfase na agência criativa do designer” (Murray, 2015, p. 226): a criatividade, entendida como produto de um indivíduo excecional, confirma a excecionalidade do designer e o facto de ser um designer quem tem ideias confirma a exclusividade das ideias a uma certa classe. Como vários autores analisaram (DeNicola & DeNicola, 2012; Wilkinson-Weber, 2004), a dicotomia tradição/inovação é uma construção que divide, de um lado, os artesãos e, do outro, a classe média/alta europeia urbana, legitimando o que Herzfeld denominou de “hierarquia de valor global” na qual uma “increasingly homogeneous language of culture and ethics” (Herzfeld, 2004, p. 2) se tornou parte do úbiqua. O designer, geralmente, legitima a sua posição de poder enquanto intermediário entre os artesãos e as pessoas de classe média/alta à qual pertence (Wilkinson-Weber, pp. 79-98). Esta dicotomia faz parte de uma narrativa histórica ocidental que se representa a si mesma como moderna e, por oposição, todas os saberes não ocidentais são designados como “tradicionais” ou “antiquados”. Esta é uma narrativa histórica que postulou o telos universal da “modernidade”, transformando as hierarquias espaciais em hierarquias temporais. A oposição deixa de ser entre o “Sul” e o “Norte”, no sentido meramente geográfico, mas entre o “Norte” que está na ponta do tempo e o “Sul” entendido como o que está atrasado no tempo.

Nesta narrativa, todas as culturas não-ocidentais são consideradas como ainda-não-modernas ou subdesenvolvidas, relativamente a essa escala temporal linear. Concomitantemente, assistimos à globalização de um conceito de "moderno" que provém exclusivamente de uma específica região do globo, um fenómeno que Chakrabarty criticou, referindo-se a ele como o ato de retirar a Europa do seu contexto provincial (2000). A modernidade, neste contexto, é uma narrativa de mudança que, através da continua rejeição do anteriormente existente, se vê a si mesma como o único agente dinâmico, isto é, aquilo que muda face ao que fez desaparecer, provocando uma aceleração vertiginosa do tempo. Assim, como nota Anttonen, “instead of traditions necessarily disappearing, that which disappears or falls out of use is named traditional” [4].

Neste projeto, o processo criativo decorreu através de uma colaboração horizontal: no caso da utilização da fibra de carrapato na tecelagem, por exemplo, a ideia surgiu de uma caminhada à nascente onde, no local onde pararam para trocar impressões estava um pé de carrapato como elemento escultórico. No dia seguinte, o artesão Marcelino Santos trouxe um instrumento para o desfiar.

A experiência desta residência relatada pela designer foi de que as práticas de arte e design resultaram no deixar fluir a matéria-prima, tendo os participantes sentido que, no final, é a matéria-prima que se impõe e que vence o ego individualista que pretende “enformar” a matéria (Flusser, 2010 [1993]).

Apesar da autoria do Projeto NEVE INSULAR ser das duas designers, Rita Rainho e Vanessa Monteiro, existem momentos nas várias etapas do projeto em que, como nesta residência, as peças resultaram de um processo colaborativo horizontal em que a autoria é partilhada.

5. Criatividade social

Podemos considerar que a colaboração horizontal, neste caso, estimulou a criatividade social a qual contraria o individualismo subjacente à noção de autoria individual. Mas, o que é a criatividade social e em que medida se distingue da criatividade individual?

Até aos anos 80, os estudos sobre a criatividade centravam-se sobretudo no indivíduo e na sua psicologia, estudando as suas disposições, personalidade, etc. Nessa década, estudos sobre o contexto para além do indivíduo – como a teoria do sistema de Csikszentmihaly (1999) – e autores como Montuori e Purser (1995) criticaram a visão de criatividade ligada ao mito do génio eremita, defendendo a noção relacional da criatividade, ligada ao contexto (Montuori e Purser, 1995). Estes estudos apelavam para uma integração multidisciplinar e para o estudo de áreas anteriormente não consideradas como relações criativas ou grupos criativos, contextos que proporcionam a criatividade, etc. A noção de criatividade ligada ao contexto social começou a surgir em livros como Criatividade Social (Montuori & Purser, 1991), que reúne textos de filósofos, antropólogos e teóricos de sistema, entre outros, ou no conceito de “ criatividade distribuída” (Glăveanu, 2016), o qual foca, sobretudo, as relações entre os indivíduos partindo do princípio de que “culture is not an isolated factor that can be easily grouped under the general label of ‘environment’ but a condition of possibility for creativity”[5] (Glăveanu, 2016, p. 3). A raiz da clivagem entre esta abordagem da criatividade e a atomista é a sua crítica à visão tradicional do indivíduo como entidade separada do contexto cultural e da natureza: os dois são inseparáveis, não sendo possível distinguir onde começa e onde acaba cada um - são um fluxo.

A noção de criatividade entendida como fruto de um indivíduo muito especial e único nasceu no Renascimento, simultaneamente à noção do génio artístico. Esta visão atomista do indivíduo tornou-se ubíqua e está na raiz do capitalismo e da mentalidade extrativista da exploração da natureza. É um mito porque considera a cultura e a ambiente como “produtos” inertes do indivíduo que evoluem através da sua acumulação. Ora, vários indivíduos ou configurações de indivíduos/matérias-primas são mais do que a soma da sua acumulação individual. A criatividade não nasce só de uma pessoa, flui da colaboração entre pessoas: para um artista conceber uma obra de arte, por exemplo, é necessária a existência do conceito de “arte” – que levou gerações a constituir-se - de galerias ou mecenas, e de público recetor. Por outro lado, o artista também se alimenta de outras obras de arte: tudo flui da colaboração entre pessoas, instituições e elementos da natureza.

Este foi o caso desta residência artística: tudo decorreu segundo um processo muito orgânico, nada tendo sido estipulado, deixando fluir. Assim, a conexão não era apenas entre as pessoas, mas, também, entre diferentes materiais naturalmente acessíveis. Estas práticas podem ser consideradas como práticas de design no sentido em que estas são sempre, essencialmente, como Herbert Simon definiu, “courses of action aimed at changing existing situations into preferred ones” [6] (1969) mas focam relações recíprocas entre as pessoas e entre estas e o lugar, entendendo aqui este último como o entrelaçamento da paisagem geográfica e cultural.

Neste contexto a criatividade não é entendida como originada por um indivíduo – ponto zero de uma linha temporal de eventos marcados pela rejeição do anterior - mas nasce de uma complexa rede de interações na qual a matéria-prima, a natureza e a herança cultural têm um papel tão ativo como as pessoas. A visão holística do ser humano e da natureza é essencial para contrariar o individualismo que opõe o homem - branco, classe média, ocidental, heterossexual - à natureza vista como matéria inerte, mero recurso amorfo, passivo e sem agenciamento. O reconhecimento do agenciamento da natureza e dos seres vivos e inanimados, não como unidades atomistas mas como configurações interdependentes entre si que formam um conjunto maior – a que Latour denomina Gaia (2015) – vai ao arrepio da visão antropocêntrica do mundo subjacente à mentalidade extrativista na natureza.

Assim, o projeto NEVE INSULAR é também um projeto artístico no sentido em que o processo − isto é, as interações entre as pessoas, instituições, matéria-prima e saberes tradicionais − é considerado obra de arte em si: desencadeado pelas autoras, estas abdicam parcialmente do controlo autocrático da produção, proporcionando situações que favorecem a criatividade social tendo em vista a sustentabilidade e como orientação básica o sistema holístico, desde a produção do algodão, até à sua utilização, troca e consumo. Nesta conceção holística são integrados os fatores socioculturais, ecológicos e económicos. As técnicas tradicionais de tecelagem tingimento e transformação do algodão tornam-se numa forma de partilha de saber e troca de respeito mútuo entre pessoas que, geralmente, não se relacionam. Nesta conjuntura, estas práticas expandidas de arte e design são políticas na medida em que operam uma diferente partilha do sensível – entendido aqui, no sentido de Rancière (2000) como o que é percecionado pelos sentidos – não considerando o indivíduo como soberano e único ser dotado de agenciamento mas aceitando, também, o agenciamento dos elementos da natureza e da criatividade social através de um processo de colaboração horizontal.

6. Considerações finais

Na conclusão deste estudo sobre o projeto NEVE INSULAR, destacamos a abordagem sistémica e holística à sustentabilidade que se centra na renovação do património cultural cabo-verdiano, tanto material quanto imaterial. Este enfoque amplia o âmbito da arte e do design para além da mera criação de produtos, promovendo sistemas que encorajam a mudança de paradigma em direção a uma sustentabilidade integrada e reinterpretam criativamente o legado cultural relacionado com o ciclo do algodão e o panúditéra.

A especificidade do contexto de Cabo Verde, embora ofereça ensinamentos valiosos, pode limitar a aplicabilidade direta das estratégias do projeto em diferentes ambientes culturais, sublinhando a necessidade de adaptabilidade e flexibilidade nas práticas de arte e design sustentáveis. Ao transformar “competências técnicas em experiências sociais”, como articulado por Sennett (2012, p. 63), O projeto NEVE INSULAR, promove uma rede de sustentabilidade em múltiplas dimensões, criando produtos que mesclam tradição e inovação. Embora estas práticas contribuam para a criatividade social ao questionar a divisão convencional entre inovação e tradição, e ao procurarem reequilibrar a hierarquia de poder global, enfrentam desafios, como questões sobre o impacto a longo prazo e a mensuração dos resultados concretos.

O projeto NEVE INSULAR, ao enfatizar o processo e a experiência coletiva, pode deixar em aberto questões sobre o impacto a longo prazo e a mensuração dos resultados concretos. Esta abordagem, centrada na criatividade social e no questionamento das divisões convencionais entre inovação e tradição, bem como na procura por um reequilíbrio da hierarquia de poder global, valoriza a contribuição coletiva e a experiência vivida. No entanto, essa ênfase na experiência coletiva e no processo, apesar de enriquecer o projeto, pode tornar menos tangíveis os métodos de avaliação do seu impacto e eficácia.

A abordagem holística e poética do NEVE INSULAR à sustentabilidade, embora não vise solucionar todos os desafios associados ao ciclo do panúditéra, estimula comportamentos cívicos e éticos ambientais. Esta orientação está alinhada com os princípios de desenvolvimento sustentável, conforme definido por Brundtland , que busca “atender às necessidades da geração presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades” (1987, p. 47). Antevendo perspetivas futuras, o projeto NEVE INSULAR apresenta um modelo que pode ser adaptado e replicado em outras comunidades e contextos, promovendo práticas sustentáveis e criativas. A replicabilidade e expansão do modelo, contudo, requerem uma abordagem sensível às dinâmicas culturais e sociais específicas de cada comunidade. A possibilidade de expansão e colaborações futuras, tanto local quanto internacionalmente, abre portas para aprofundar e expandir os impactos na sustentabilidade e inovação cultural.

Resumindo, o projeto NEVE INSULAR, com suas práticas inovadoras, oferece novas maneiras de interagir com o mundo, enfatizando a adaptabilidade e as estratégias específicas do contexto. Ao questionar as fronteiras convencionais entre tradição e inovação, o projeto infunde novos significados políticos e simbólicos no património cultural do panúditéracabo-verdiano, libertando a imaginação para configurar constelações de relações mais sustentáveis entre os seres humanos e a natureza.

Notas

[1] Entrevista realizada a 02.20.2019, Mindelo, Cape Verde.

[2] Apoio do Instituto Camões, do Ministério da Agricultura, consultoria das ONGs Estudos Inter-agricultura CERAI e Amigos da Natureza.

[3] Financiado por DIVERSIDADE - instrumento de Subvenção do PROCULTURA PALOP-TL, projeto financiado pela União Europeia, gerido e cofinanciado pelo Instituto Camões, IP em parceria com a EUNIC].

[4] "Em vez de as tradições desaparecerem necessariamente, aquilo que desaparece ou cai em desuso é nomeado como tradicional." [Tradução livre].

[5] "A cultura não é um fator isolado que pode ser facilmente agrupado sob o rótulo geral de 'ambiente', mas sim uma condição de possibilidade para a criatividade." [Tradução livre].

[6] "Cursos de ação destinados a mudar situações existentes para outras preferidas." [Tradução livre].

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How to Cite
da Silva, A. (2024). Tradition versus Innovation. Art and Design Practices for Holistic Sustainability: The Insular Snow Project. Convergences - Journal of Research and Arts Education, 17(34), 41–52. https://doi.org/10.53681/c1514225187514391s.34.249
Section
Case Reports

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