Animal representations and forms of speciesism in Environmental Studies Textbooks for the First Cycle of Basic Education in Portugal: Exploring (In)Visibilities, Ethical Implications and Arts Education
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Abstract
In Why Look at Animals? (2009), John Berger argues that the mutual gaze between animals and humans has been lost. This historical rupture, he suggests, has become irreversible within a contemporary cultural landscape shaped by capitalist extractivism and characterised by visual and ideological forms of cognitive dissociation and psychic numbing (Joy, 2018). This numbing, it can be argued, has functioned as a powerful mechanism of control, sustaining a long-standing history of abuse and violence that underlies current systems of animal exploitation and the industrial production of their lives — and their suffering (Winters, 2023). From an ethical standpoint, the notion of the animal’s best interest brings to the fore the problem of speciesism (Singer, 2008) and its anthropocentric legacies (Agamben, 2002). These legacies are embedded in pedagogical approaches that objectify, de-individualise, and reinforce binary perceptions of animals, prompting us to question not only our relationship with other species but also the ethical foundations of our own. This article results from a wider research project investigating the (in)visibility of identities in Estudo do Meio (Environmental Studies) textbooks published in Portugal since 1974 ([in]visible – 2022.05056.PTDC; 2023–2024). It examines the visual representations in a primary school textbook (Plim!), exploring how such imagery contributes to the construction, reinforcement, and normalisation of specific narratives about the animal condition.
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1. Introdução
Neste artigo situo-me no seio da epígrafe de Plutarco, tendo em vista penetrar na raízes culturais e humanistas que damos por naturais e inevitáveis, designadamente no que diz respeito à ideia de espécie. Tal intenção deriva da necessidade, quanto a mim urgente, de questionamos uma escala de valores cuja premissa nasce de uma crítica às formas dominantes de saber e às práticas discriminatórias e de poder que pomos a uso, sejam elas racistas, sexistas, identitárias ou especistas, inscrevendo esse exercício no campo epistemológico e ontológico da educação artística. Assim, o objetivo principal deste artigo é refletir sobre a matriz antropocêntrica presente no manual de Estudo do Meio (Plim!) [2], utilizado no 1º Ciclo do Ensino Básico (CEB). A análise centra-se nos discursos das imagens que o compõem e no modo através do qual o seu universo contribui para a naturalização de narrativas especistas, nas suas modalidades omissas, coercivas e opressoras das representações animais. Tais representações, no manual analisado, operam por lógicas narrativas e imagéticas, cujos aparelhos não só reproduzem processos de mitologização simbólica dos contextos de vida animal, como omitem as práticas exploratórias e a que os animais inexoravelmente se encontram sujeitos. À luz destes pressupostos, uma reflexão crítica sobre o antropocentrismo de base humanista leva-nos a considerar a necessidade de uma ética mais inclusiva, cuja força seja capaz de reconhecer o valor intrínseco dos animais enquanto seres sencientes, cuja individualidade, dotada de uma experiência subjetiva, é inerentemente valiosa. Tal reconhecimento deve considerar as liberdades fundamentais proclamadas pelo Relatório Brambell [3] em 1965, liberdades essas sustentadas por uma perceção orientada pela empatia e abolição de quaisquer formas de crueldade. Ora, até que ponto esta perceção surge plasmada no Manual de Estudo do Meio do 1º CEB, Plim!, de 2016-2022? Com que narrativa(s) antropocêntrica(s) e representações animais nos deparamos? Neste texto começo por uma incursão em torno das formas de especismo moderno que, a ocidente, moldaram a visão imperativa dos seres humanos face a membros de outras espécies. Em seguida, com base neste enquadramento, centro-me no universo visual e imagético do Plim!, entendendo-o como um “dispositivo pedagógico” (Foucault, 1997), isto é, como uma rede de discursos, imagens e relações de poder, cujas dinâmicas, de natureza semiótica e institucional, influenciam a produção de um saber sobre os animais e as práticas de condicionamento social e cultural que lhes associamos. Antes porém, refiro as premissas metodológicas que presidiram à análise das imagens do manual em estudo e a matriz epistemológica que orientou a lógica processualadotada.
2. Metodologia
A escolha pela leitura e análise do Plim! deve-se à sua ampla utilização nas escolas do 1º CEB e à sua atualidade face a outros manuais em circulação nas escolas portuguesas. Enquanto objeto de estudo, este manual é abordado numa lógica qualitativa e expandida, no âmbito da qual as imagens são encaradas como elementos de uma narratividade mais ampla, cujo discurso procura ir além de referenciais meramente textuais. Assim, tais imagens surgem intersetadas com outras reflexões e imagéticas, destacando as de Grandville e de Beatrix Potter, através das quais procuro operar a crítica a um antropocentrismo humanista, eurocêntrico e colonizador, designadamente de corpos, espécies, formações simbólicas e imaginários. Nesta medida, as imagens do referido manual são encaradas nas suas performatividades discursivas e políticas, porque elas atuam na produção cultural das ideologias vigentes. A perfomatividade, no sentido proposto por Donna Haraway (2022), refere-se a uma “operação narrativa” cuja ação institui linguagens e transforma formas de representação cognitiva. No seu discurso, as imagens que representam os animais – principalmente como comida, ornamento, ou enquanto objeto utilitário – remetem para determinadas práticas sociais de alteridade, no das quais se estabelecem conexões entre elementos narrativos dados como normais, naturais e necessários (Joy, 2018). Ora, no caso em estudo, tais performatividades moldam ações e discursos especistas geradores de impacto nos quotidianos sociais e educativos onde crianças e adultos aprendem a relacionar-se com membros de outras espécies. Tal impacto torna-se visível ao nível das ideias, ideais, crenças, valores e formas de linguagem (Faria e Almiron, 2024), a ideologia especista informa a maneira pela qual as pessoas agem no mundo, no sentido de reforçarem e justificarem a sua própria ideologia, ainda que à custa de mecanismos psicologicamente invisíveis do ponto de vista do sistema de crenças que lhe subjaz. A propósito, Catia Faria e Núria Almiron, em Especismo y Lenguage, referem inclusive que “a linguagem especista consiste no uso de terminologia que tende a degradar, ignorar ou estereotipar animais de determinadas espécies, refletindo a crença, muitas vezes inconsciente, de que alguns são inferiores a outros, pelo que estaria justificado tratá-los pior." (Faria e Almiron, 2024, p. 12). Ora, na perspetiva da cultura visual, tal como aponta Paul Duncum (2010), “as imagens são saturadas com ideologias que revelam esperanças, medos, expectativas, certezas, incertezas e ambiguidades da nossa vida.” (Duncum, 2010, p. 4). Com efeito, é por meio da interação real e simbólica com as imagens que, enquanto sociedade, partilhamos determinados pressupostos sobre como o mundo é, deveria ser ou não deveria ser. “Todas as imagens são ideológicas”, continua Duncum, “no sentido de que a imagem surge de uma matriz de ideias concorrentes, valores e crenças e é sempre feita com um propósito.” (Duncum, 2010, p. 4). Ora, algumas ideologias comuns assentam em valores hegemónicos diretamente relacionados com sexo, raça, classe e espécie e, frequentemente, tais ideologias, como o especismo e o carnismo (Joy, 2018) são percecionadas de modo apologético, naturalizando modos de conhecimento e ação a partir de pressupostos binários, excludentes e opressivos. A análise das imagens que atravessa o Plim! procurou obedecer a um conjunto de premissas metodológicas intrinsecamente processual, ao invés de uma leitura de teor quantitativo e comparatista. Por conseguinte, não dou conta do número de imagens especistas que constituem o manual, porque tal opção seria como predeterminar categorias de presença e ausência de um discurso que é socialmente construído, anulando aí gesto de subjetivação, o qual, na sua génese, constitui o sentido da nossa relação com o fenómeno visual. As premissas metodológicas às quais me refiro prendem-se, antes, com a intertextualidade, a ideologia, a estética e a relacionalidade das imagens, vistas justamente enquanto dispositivos pedagógicos, os quais, muito além dos seus elementos formais e ilustrativos, agem sobre processos de aprendizagem em que as relações entre visualidade e pensamento adquirirem uma forte dimensão recíproca e conflitual. Neste sentido, na análise e discussão apresentadas procurei contrariar uma abordagem do tipo cognitivista e que na maioria dos casos tende a reduzir a imagem a um objeto textual povoado de significados a serem concetualmente interpretados, e sobre os quais os «leitores» desprovidos de qualquer tipo de e poder. Importou-me, portanto, olhar as imagens na sua performatividade simbólica, cultural e política, mas não apenas porque tal performatividade é criadora de significados comuns. Na verdade, o que me interessa nesta análise é a sua possibilidade de agência, o lugar a partir do qual podemos falar sobre as imagens que vemos e onde a linguagem pode agir sobre o real, reconfigurando-o nas suas inúmeras formas de existência. Com efeito, procedeu-se a uma interpretação de carácter semiótico (Fonseca, 2018), considerando uma componente de análise focada nas relações entre os elementos das imagens, e uma outra relativa às formas narrativas de representação e expressão visual dos animais. Da totalidade de imagens que compõem o referido manual fizemos uma primeira seleção em torno daquelas nas quais os animais surgem visualmente representados em contextos associados a uma vida quotidiana, natural e/ou social. Na verdade, do ponto de vista quantitativo, o Plim! não possui uma variedade significativa de imagens representativas dos modos de vida animal. Aquelas que surgem como objeto de análise neste artigo resultam de uma segunda seleção cujos critérios foram os seguintes: a) imagens nas quais os animais são representados em lugares e contextos naturais e sociais (i. e., na natureza, em situações domésticas e em realidades urbanas); b) imagens nas quais os animais estão em interação com membros de outras espécies; e c) imagens cuja produção visual resulta na antropomorfização cultural da vida dos animais e na ocultação dos seus reais contextos de exploração e sofrimento. Deste modo, procurou-se atender sobretudo às omissões e aos aparelhos de violência aí praticados, bem como aos antropomorfismos pelos quais os animais são representados enquanto seres híbridos – sorrindo, brincando, usando vestuário ou praticando tarefas humanas. De tal interpretação semiótica surgiram as seguintes categorias de análise: 1) mitologização e bucolismo da vida animal; 2) omissão dos contextos de violência e exploração; 3) antropomorfização dos animais; 4) objetificação e utilitarismo animal.
3. Serão apenas coisas?
Segundo Peter Singer, “o sofrimento que infligimos aos animais enquanto estão vivos talvez indique o nosso especismo mais claramente do que o facto de estarmos dispostos a matá-los.” (Singer, 2010, p. 35). A sociedade atual tolera métodos de produção e exploração de seres sencientes, subordinando-os a espaços degradantes durante toda a sua vida, apenas para obtermos carne a preços acessíveis e à custa de animais transformados em máquinas lucrativas. Sabemos que as aves, os porcos, os vitelos e os peixes são o produto e o alvo de uma crueldade ao serviço da indústria da carne e do pescado, cuja legitimidade continua a ser atestada, não só por produtores intensivos, como por especialistas em agropecuária, veterinária e nutrição clínica. Esta legitimidade é posteriormente validada através da presença de determinados dispositivos pedagógicos em circulação nas escolas, como os manuais escolares, nos quais os animais, apesar de frequentemente inscritos em narrativas de bem-estar e cuidado, surgem representados enquanto bens de investimento, altamente rentáveis. Tais representações visuais dos animais como comida operam pela desconexão entre a carne e os animais sencientes. Trata-se de uma ideografia cuja racionalidade, entre outros aspetos, representa os animais da quinta como comida, desvinculando-os da produção agropecuária intensiva. Esta linguagem é naturalizada por uma imagética científica representada pela roda dos alimentos e suas sucessivas reformulações, ainda que contando sempre com presença da carne e do pescado, bem como de outros produtos de origem animal. Tal roda, entre outros aparelhos cognitivos, é o que sustenta a ideologia do carnismo (Joy, 2018) e o entorpecimento psíquico induzido pela crença numa ciência positivista, profundamente inscrita na tradição cultural dominante. Ora, no seio de tal contexto, que possibilidades de relacionamento nos restam com animais não humanos concebidos enquanto concidadãos autónomos e residentes? Até que ponto a questão da igualdade e do relacionamento inter-espécies é colocada a estudantes de educação artística? Qual a possibilidade para que esta questão se constitua num evento de educação artística (Atkinson, 2006)? A edagogia hoje pratica nas universidades não desafia os preconceitos na base dos quais se constrói o sentido das nossas relações com as outras espécies. O problema da igualdade, do ponto de vista da filosofia ética e política, continua a ser formulado em termos de igualdade humana. Apenas quando concebermos os seres humanos como um subgrupo de todos os seres que habitam o planeta, tal como propõe Singer, é que poderemos compreender que, ao elevarmos nossa espécie, estamos simultaneamente a diminuir o estatuto relativo de todas as outras. Portanto, torna-se necessário alterar o significado e o fundamento das nossas atitudes, práticas e perceções relativamente a animais não humanos. Neste contexto, a educação artística, entendida como um campo propenso ao dissenso e ao posicionamento crítico, pode constituir-se numa arena para ativar essa transformação, produzindo uma alteridade significativa com todos os seres, porque, e lembrando as palavras de Jeremy Bentham (1748- 1832), o sofrimento pode ser evitável.
4. Performatividade se discurso das imagens
4.1 Mitologização e bucolismo da vida animal
Vejamos alguns exemplos dessa alteridade significativa – ou, “ontologias emergentes”, recorrendo à expressão de Donna Haraway (2022) – presente nos discursos das imagens que compõem o Plim!. Comecemos pelas representações visuais dos lugares em que os animais não humanos surgem representados neste manual. As crianças que tomam contacto com manuais escolares, e sobretudo com livros infantis, são levadas a pensar na quinta (e, nalguns casos, no bosque) como um local onde os animais se deslocam livremente, imaginando-se aí uma vida animal rodeada de condições idílicas. Esta representação exemplifica a Categoria 1 (Mitologização e bucolismo da vida animal), reproduzindo o que Rousseau, no séc. XVIII, conceptualizou como “bucolismo radical”. Tal perspetiva rousseauniana assenta na idealização de uma vida natural, virtuosa e simples, por contraponto à doutrina da técnica e da civilização modernas, cuja narrativa pedagógica surge inscrita no discurso destas imagens.
Figure 1. Como vivem os animais? Fonte: Plim!, 2016-2022, p.83 e 85
Este facto é revelador da nossa alienação relativamente às reais circunstâncias em que os animais são criados para consumo alimentar. Não existem quintas nos subúrbios e nas cidades onde a maioria de nós vive e, quando passeamos pelo campo, no lugar de quintas, vemos diversos edifícios agrícolas e relativamente poucos animais. Quantos/as de nós conseguem distinguir um celeiro de um aviário? Além disso, os media, incluindo os digitais, apresentam propostas educativas pouco sólidas sobre esta realidade. Tal como refere Peter Singer, “o telespetador médio deve saber mais sobre a vida das chitas e dos tubarões do que sobre a vida dos bezerros e das galinhas.” (Singer, 2008, p. 202).
4.2 Omissão dos contextos de violência e exploração
Grande parte dos manuais escolares apresenta às crianças imagens de galinhas, perus, vacas ou porcos rodeados pelas respetivas crias, sem se vislumbrar uma gaiola, um compartimento ou um cercado. Na sua maioria, estas imagens transmitem uma ideia de simplicidade rural, mostrando a galinha nas suas diferentes fases da vida, correndo livremente pelo pomar com as suas crias – embora no caso do Plim! a presença das crias seja inexistente. Tal realidade é reveladora do significado da Categoria 2 (Omissão dos contextos de violência e exploração), tal como fica expresso na Fig. 2.
Figure 2. O que são seres vivos? Fonte: Plim!, 2016-2022, p. 82
Singer estabelece um paralelo com o feminismo contemporâneo: do mesmo modo que o movimento feminista conseguiu incentivar a emergência de uma literatura infantil e imagética presente nalguns manuais escolares, nos quais as raparigas desempenham papéis ativos cujo domínio estaria reservado aos rapazes, as representações visuais dos animais deveriam respeitar a sua individualidade enquanto seres independentes, ao invés de serem representados como pequenos objetos lúdicos que existem para diversão ou para figurarem à nossa mesa. Mas outros temas merecem análise visual crítica, nem que seja pela sua invisibilidade, como por exemplo as alternativas aos modelos vigentes de produção animal, o modo intensivo de produção dos ovos, o estado sanitário individual em que se encontram as galinhas poedeiras, o risco de doenças zoonóticas, a falta de espaço disponível e de luminosidade nas explorações de criação, entre tantas outras realidades inabaláveis da indústria de produção. Apesar dos antropomorfismos presentes no filme A Fuga das Galinhas (2000), da DreamWorks, a verdade é que talvez este dispositivo visual esteja já a fazer o trabalho que aqui advogo, ao focar-se justamente nas condições de produção e violência subjacentes aos modelos intensivos de criação, e das quais as galinhas mantêm a forte esperança de, algum dia, conseguirem escapar.
Figure 3. Fotograma do filme A Fuga das Galinhas, Dreamworks, 2000 Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=GHfBNjQAon4
Figure 4. Chicken illustrations & Books, Beatrix Potter, 1866-1943 Fonte: https://www.dreamstime.com
Todavia, considero que tal trabalho, cujo gesto implica uma relação próxima com as imagens, não deve ficar ao serviço das indústrias de lazer e entretenimento. Tal trabalho pode ocupar o centro do estudo do meio e das diferentes descobertas das crianças, cujas perspetivas tanto podem ser biocêntricas, zoocêntricas antropocêntricas, à medida que estabelecem uma familiaridade com o discurso do manual. Nós sabemos evitar o sofrimento animal; é no âmbito deste ethos que reside a nossa responsabilidade ética. Será, portanto, através de um trabalho crítico com as imagens que uma possibilidade se abre – a possibilidade de passarmos da mera simpatia à empatia, desobedecendo a uma leitura sedutora e afável das imagens dos manuais, tendo em vista uma interpelação da natureza e das identidades dos sujeitos individuais, capaz de questionar o que se vê e como se vê.
4.3 Antropomorfização dos animais
Com efeito, coloco-me ao lado de John Berger (2020), quando pergunta Porquê olhar os animais? Berger replica com um lamento: o olhar entre o animal humano e não humano perdeu-se; já nada pode ocupar um lugar central na sua atenção. Aquilo que distinguia os humanos dos animais nascia e, até ao séc. XIX, o antropomorfismo fazia parte dess , sendo uma expressão da sua proximidade. Nos últimos séculos, contudo, sobretudo com o avançar da perspetiva cartesiana, os animais têm vindo a desaparecer. Hoje convivemos com os seus vestígios, de que as imagens são um dos seus principais reflexos. A captura, segundo Berger, deu-se por duas vias – familiar e espetacular. Transformados ou em fantoches humanos, explorados pela Disney, ou anos antes pelas ilustrações de Beatrix Potter, os animais desapareceram agora ainda de uma outra forma. Falo das épocas festivas em que os livros de animais surgem nas prateleiras das livrarias, ou dos feriados celebrados pelas escolas através d cartões animados corujas bebés ou pelo gato das botas. A proliferação desta cultura, simbolicamente imbuída na contemporaneidade visual, dá corpo à Categoria 3 em análise (Antropomorfização dos animais), cujas imagens reproduzem as vidas dos animais sob a ótica de um antropocentrismo, não só mitológico, como tautologicamente humanístico, no sentido de uma dignitase de uma relação com a polis,cuja discursividade um estado (humano) considerado de exceção. Neste contexto, “todos os animais parecem peixes vistos através do vidro de um aquário.” (Berger, 2020, p. 44). O que se passa, nesta esfera em particular, é a que as imagens dos animais apenas existem graças à sua invisibilidade na vida social e cultural; nesta ideologia do espetáculo, “eles são os observados” (Berger, 2020, p. 45).
Figure 5. Public and private life of animals, 1840-1842, Grandville Illustrations Fonte: https://publicdomainreview.org
Berger considera que o modo pelo qual os animais eram tratados na pintura romântica do séc. XIX era já um reconhecimento do seu iminente desaparecimento. São imagens, diz ele, de animais que retrocedem a um estado selvagem existente apenas na imaginação. Berger assinala, no entanto, uma exceção, a qual se prende com o trabalho de ilustração de Grandville, em A Vida Pública e Privada dos Animais (1840-1842). Todavia, aqui, os animais surgem aprisionados como pessoas, não são metáforas morais, nem sequer máscaras; na verdade não desmascaram nada. Por conseguinte, o fenómeno antropomórfico de Grandville é levado ao extremo, criando mitologias e mitificações que consistem em atribuir aos animais características que eles não possuem (Agamben, 2002). As representações visuais dos animais, como se pode ver no Plim!, operam ou por omissão, isto é, eles desapareceram da vida e do meio que a criança descobre, ou, em contrapartida, por mitologização, tal como vimos a propósito da Categoria 1 (Mitologização e bucolismo da vida animal), através da qual os animais surgem representados em contextos de prazer e de socialização lúdica. Mas há ainda uma outra dimensão das imagéticas animais, a qual passa pelo seu estatuto acessório, decorativo e meramente ilustrativo de um cenário dominado pelo humano, e cuja composição se faz valer desse mesmo estatuto «secundário».
Figure 6. O que mais gostas de fazer com a tua família?/Como localizamos espaços?/À descoberta do ambiente natural Fonte: Plim!, 2016-2022, p. 19, 52 e 92
Ora, tal significa que as representações animais operam por narrativas, imagens e linguagens, omitindo os verdadeiros contextos de relação dos animais não humanos (explorados) com os animais humanos (exploradores). Com efeito, as representações culturais e visuais dos animais falam de um animal invisível que a criança de facto desconhece, ou apenas conhece através da banalidade das imagens, da relação que mantém com o animal de companhia, ou com aqueles que ela vê em ação no ecrã do telemóvel ou da TV. Falamos, assim, de representações que operam através de processos de mitificação simbólica dos animais, usando o termo de Rui Pedro Fonseca (2018), em A Vaca que não Ri, em paralelo com fenómenos de omissão das suas práticas de repressão e violência. Com efeito, trata-se da produção de uma antropomorfização dos animais – tal como fica expresso na Categoria 3 – à custa das relações semânticas que se estabelecem entre as Categorias 1 (Mitologização e bucolismo da vida animal) e 2 (Omissão dos contextos de violência e exploração) anteriormente descritas. Em suma, e voltando a Berger, “o movimento que termina na banalidade da Disney começara com um sonho profético e perturbador no trabalho de Grandville.” (Berger, 2020, p. 48).
Figure 7. Symphonic orchestra with playing animals, Grandville Illustrations, 1828-1829
Figure 8. The Aristocats, Walt Disney, 1970 Fonte: https://www.terra.com.br
4.4 Objetificação e utilitarismo animal
Por outro lado, ainda julgamos que é possível estudar a vida natural dos animais mesmo em condições que sabemos serem artificiais. Todavia, não falamos apenas do seu estudo; o lazer, a interação positiva, a observação, a estética decorativa, também estas formas de relação humano-animal entram neste tipo de . Os jardins zoológicos, ou mesmo os parques naturais, são disso um real exemplo, tal como a pesca «recreativa».
Figure 9. O que mais gostas de fazer com a tua família?/O que costumas fazer durante o dia? – observa a linha do tempo Fonte: Plim!, 2016-2022, p. 19 e 77
Torna-se inquietante observar como no Plim!, não obstante o bucolismo de certas representações, as imagens das crianças a interagirem com os animais com animais surgirem enquadradas num mundo industrializado, e no qual a imagética animal desempenha um papel crucial: brinquedos, peluches, desenhos animados, motivos decorativos de todo o tipo. Mesmo os jogos infantis, nas suas linguagens e formas de diversão, incluem reais ou pretensos animais, de forma a fixarem determinadas regras de conduta, perigos ou sentimentos. Creio que o brinquedo animal – ou o peluche – patente em muitos manuais escolares, constituiu-se num daqueles dispositivos ao serviço da naturalização dos interesses universais das crianças pelos animais.
Figure 10. Quais os materiais que usas na escola?/Desenha mais um objeto para cada divisão da casa/À descoberta de relações inter-relações entre espaços/À descoberta dos materiais e objetos Fonte: Plim!, 2016-2022, p. 10, 13, 46 e 54
O facto de a imagética animal surgir vinculada com os interesses naturais da criança conduz de todos os seus interesses naturais e, por arrasto, de todas as infâncias e seus mundos possíveis. Tudo parece passar-se como se a legitimidade natural da infância nascesse do seu genuíno interesse pelos animais. Ora, a instrumentalização da imagética animal esteve e está claramente ao serviço do utilitarismo dos animais, de modo a manter o establishment de uma sociedade de consumo no âmbito da qual as crianças são vistas como público interessado e comprador. A reprodução de imagens, tal como na Fig. 10, no âmbito das quais os animais são representados como um objeto entre tantos outros que pertencem doméstic e lúdic da criança, surge na base de operações narrativas complexas que objetificam a vida animal do ponto de vista da sua utilidadee consumo. Tal é o que pressupõe a Categoria 4 que temos vindo a analisar (Objetificação e utilitarismo da vida animal). Neste contexto, as crianças tornam-se espetadoras do animal representado ou no manual, ou no brinquedo que têm em casa, ou ainda no ecrã qucontinuamente . Se as jaulas do zoológico correspondem a molduras, não é menos verdade que hoje em dia as crianças relacionam-se com os animais através de símbolos e do vidro. Para a criança espetadora, o animal torna-se num adereço que ela vê através de uma moldura, ainda que essa mesma moldura constitua o ambiente mínimo necessário em que os animais podem fisicamente existir. No seu conjunto, estas formações simbólicas marginalizam os animais do ponto de vista da sua individualidade, numa realidade dentro da qual existem imageticamente de forma artificial e totalitária. Assim, torna-se claro que os jardins zoológicos, ou até mesmo as mais recentes quintas pedagógicas, os brinquedos animais e a difusão comercial da imagética animal, tudo isto teve o seu início à medida que os animais foram retirados da vida quotidiana e tornados objetos. Tal fenómeno é, além disso, expressão de um especismo politicamente inscrito nas práticas pedagógicas que têm lugar na Escola e fora dela, mas um especismo cuja predominância, agora, opera no mundo das representações e na construção da imagética contemporânea, fruto e ao mesmo tempo reforçado pelas indústrias do marketing visual, cujas armas estéticas não só controlam, como modelam as singularidades dos contextos sociais e educativos.
5. Reconhecer o especismo e o espaço da educação artística
Diante de tais cenários, acredito porém nas possibilidades de uma educação artística, mediada pelas imagens dos manuais escolares, capaz de enfrentar as forças atuais do especismo. Mas para que tal suceda é necessário, antes de tudo, reconhecê-lo na sua estrutura e formas variantes. A reprodução de práticas e atitudes especistas está profundamente enraizada e normalizada em praticamente todas as dimensões da interação social e cultural, transformando o especismo num fenómeno estrutural. Estruturalmente, portanto, e segundo Catia Faria e Nuria Almiron, o especismo encontra-se inscrito “em todas as instituições sociais, desde a economia e os meios de comunicação, passando pelo sistema de justiça e educativo, até aos sistemas políticos que governam as nossas sociedades." (Faria e Amiron, 2024, p. 13). É justamente neste sentido que a educação artística pode constituir-se num espaço de suspensão dos modos de ver e pensar as representações animais, questionando as narrativas de bem-estar e sedução de grande parte das imagens em que os animais surgem visualmente representados. Recorrendo a uma expressão de Boris Groys (2009), os processos de educação artística ocorrem por contaminação e infeção, sobretudo entre contextos de produção e observação artística com os quais estudantes e docentes convivem. É essencial, a este propósito, operar uma crítica aos modelos de instrução estabelecidos e às suas tentações domesticadoras, seja pela via das práticas escolares, seja pelos dispositivos pedagógicos que as medeiam. O discurso pedagógico não é neutro; as nuances que o constituem formam relações de significação cujas práticas, de carácter performativo – tal como vimos na secção 2 do presente artigo – implicam modos pessoais e institucionais de nos relacionarmos com os animais, na garantia das suas liberdades. É justamente o sentido dessa performatividade, e que a todo o instante nos educa sobre a forma da nossa relação com membros de outras espécies que, hoje, urge questionar, ou como diria Nora Sternfeld (2016), desaprender, porque ela esconde e reproduz relações de poder e de desigualdade com efeitos ao nível da manutenção da normatividade do especismo social, cultural e político. Atualmente, o desafio que enfrentamos não é o da homogeneização dos seres vivos, mas o do respeito pela vida dos seres nas suas diferenças e singularidades; não é o da insistência na igualdade entre todos, é o da ênfase nas modalidades de coexistência das diferenças e a heterogeneidade das formas de vida. Para tal, a falibilidade humana e a humildade epistémica constituem-se em caminhos necessários a uma educação que inaugure o debate e a alteridade crítica e significante. Assim, uma reflexão profunda sobre o antropocentrismo convoca em nós a reconsideração do sentido da nossa própria relação ética com outras espécies. Ao reconhecermos que os animais possuem a capacidade de sentir, pensar e formar vínculos podemos desenvolver uma ética baseada na empatia, no respeito e na hospitalidade. Essa mudança de paradigma implica-nos num gesto comprometido com a complexidade da imagem e a praxis insubmissa e transformadora da educação (Freire, 1993), no âmbito da qual se reconheça a existência dos animais numa ecologia plural de saberes, a favor da libertação.
Agradecimentos
Este trabalho foi parcialmente apoiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do financiamento plurianual atribuído ao CIIE [grants n.º UIDB/00167/2020 e UIDP/00167/2020].
Notas
[1] https://invisible.i2ads.up.pt/
[2] Espadinha, L. & Dimas, M. J. (2016; 2022). Plim! Estudo do Meio 1º ano. Texto Editora
[3] Em 1965 são publicadas as Cinco Liberdades Fundamentais dos Animais, conhecidas por cinco liberdades de Brambell, um ano após a publicação dos trabalhos de Ruth Harrison (1920-2000), em Animal Machines, The New FactoryFarmingIndustry, uma das primeiras autoras, da segunda metade do séc. XX, que, em 1964, denuncia as condições humilhantes de exploração animal presentes nas quintas de criação americanas. Tais liberdades, inscritas num relatório encomendado pelo Reino Unido ao médico veterinário e professor britânico Roger Brambell, determinavam que os animais de produção deveriam ser capazes de levantar-se, deitar-se, virar-se, limpar-se e esticar os seus membros. Adotadas pela Organização Mundial de Saúde Animal, como citério aferidor do bem-estar animal, as referidas liberdades reformularam-se do seguinte modo: 1) livre de fome e sede; 2) livre de desconforto; 3) livre de dor, lesões ou doença; 4) livre para expressar os comportamentos normais; 5) livre de medo e aflição.
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