What is achieved, what is lost Public art and gentrification in two American cities

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Luiz Sérgio de Oliveira
https://orcid.org/0000-0002-8616-5089

Abstract

Articulating notions from the history of cities, the history of public art, urban morphology and critical urbanism, this article brings together two art projects that fit into the scope of absences and memory in contemporary cities. On the one hand, a city that could see the sea from its window, before successive landfills pushed the sea away until it was invisible in the landscape. The city of Rio de Janeiro, in a continuous process of urban transformation, has seen its features transmuted to the point of non-recognition. Guga Ferraz's project (Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia, 2014) symbolically retraces the lines between the sea and the city of Rio de Janeiro, lines that had disappeared in the early 1920s.
At the other end is a public art project that recreates, in its most simplified architectural form, what life was for a community that greeted the joy of living at Pier 52, on the banks of the Hudson River, New York. The work Day's End (2014-2021), by American artist David Hammons, redraws in memory and in the ethereal spaces that float between the river, the city and the horizon, the traces of the riverside warehouse that, suppressed from the landscape, survives in its ghostly lines. 
Each in their own way, the works of Guga Ferraz and David Hammons seem to replicate, in their phantasmagoria, the abandonment of cities degraded by successive gentrification processes.

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1. Introdução

As grandes metrópoles atravessam continuados processos de transformações urbanísticas que, eventualmente, alteram suas feições aos limites do não reconhecimento. Em um mundo dominado pela lógica do capital e do neoliberalismo, essas mudanças no tecido urbano e social das grandes cidades são desenhadas em projetos que, frequentemente, acarretam processos de exclusão ao empurrar camadas mais pobres da sociedade para localidades distantes dos centros urbanos, localidades que se transformam em espaços de não visibilidade. Dessa maneira, vai se construindo uma feição de cidade que reserva seus centros urbanos para o usufruto daqueles que integram a camada social onde residem os privilégios.

Figure 1. Início do desmonte definitivo do Morro Castelo em 1921, na atual rua México. Foto: Augusto Malta/Acervo AGCRJ. Fonte: https://infograficos.oglobo.globo.com/rio/castelo-360o.html.

O desmonte do Morro do Castelo, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, se situa entre uma das transformações que têm atravessado a história da cidade (Fig. 1). O arrasamento do morro deu origem à Esplanada do Castelo, na qual viriam a ser construídas, já nos anos 1930, edificações que visavam revelar a força do Estado brasileiro, tais como o Ministério da Educação e Saúde, mais tarde Educação e Cultura, e o Ministério da Fazenda, além de prédios comerciais ocupados por escritórios em uma sucessão de ruas abertas a partir da supressão do morro. Embora ideias em torno do desmonte do Morro do Castelo tenham começado a circular ainda ao século XIX, ele resistiu parcialmente ao “bota-abaixo” promovido nos primeiros anos do século XX pelo prefeito Pereira Passos.

A proximidade entre o Morro do Castelo, a “apenas vinte metros da civilização” (Motta, 1992 apud Menez, 2014, p. 73), e as novas edificações suntuosas da Avenida Central parecia acentuar o desejo de seu desmonte, de maneira a eliminar o “contraste violento entre a civilização (o homem branco descendente do europeu) e a barbárie (negro ou indígena) representada pela imagem do morro do Castelo” (Menez, 2014, p. 73). Nesse contexto social, o morro permanecia em pé apenas em função da ausência de recursos nos cofres da administração municipal.

No início da década de 1920, com a visita dos reis Alberto e Elizabeth da Bélgica ainda em setembro de 1920, além da proximidade das comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil, o prefeito Carlos Sampaio recebeu o apoio necessário para o arrasamento do morro, que “era visto como um atraso para o Brasil, [um país] que devia se modernizar para finalmente entrar na seleta categoria de nações civilizadas” (Menez, 2014, p. 73).

Os destroços do desmonte do Morro do Castelo, que se posicionava às costas da igreja de Santa Luzia, foram utilizados pelo prefeito Carlos Sampaio para dar seguimento às obras realizadas por Pereira Passos na ocasião da abertura da Avenida Central. Para tanto, Carlos Sampaio aproveitou a “pequena distância do material escavado até a sua deposição no mar, ao longo da praia de Santa Luzia e da enseada da Glória” (Reis, 1977 apud Paixão, 2008, p. 173). Assim, a cidade viu o mar recuar, deixando de bater nas bordas da igreja de Santa Luzia (Fig. 2), redesenhando as linhas do encontro do mar com a cidade. É justamente essa linha pregressa de encontro entre mar e cidade que o projeto de intervenção urbana de Guga Ferraz, Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia (2014), visa recuperar no plano do simbólico e do sensível.

Figure 2. Praia e Igreja de Santa Luzia, circa 1906. Biblioteca Nacional, Brasiliana Fotográfica (Coleção Mestres do Século XX). Foto: Rodrigues & C°. Editores e Proprietários.https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/9218.

Da mesma maneira, o artista estadunidense David Hammons resolveu redesenhar, em uma materialidade etérea, a memória de um grande armazém às margens do rio Hudson, em Nova York, local que era ocupado na década de 1970 pela comunidade do West Village, que ali saudava os encontros, a vida e a alegria de viver nos fins de tarde banhados pelo pôr do sol do outro lado do rio, atrás da cidade de Hoboken, Nova Jersey.

Assim como o Rio de Janeiro, o principal núcleo da cidade de Nova York, a ilha de Manhattan, atravessa permanentemente continuados processos de transformações que, em um tempo demarcado por poucas décadas, vão eliminando a diversidade em sua ocupação territorial. A cidade de Nova York, em especial Manhattan, é hoje uma cidade absolutamente gentrificada e turistificada, com a ocupação de seus bairros e distritos inexoravelmente atada aos interesses do capital e do neoliberalismo. Instalado na beira do rio, em frente às novas instalações do Museu Whitney e com a face voltada para Hoboken, uma cidade que já é outra cidade diante da gentrificação que se espalha espelhada em Manhattan, o próprio trabalho de David Hammons, ao mesmo tempo que, em suas linhas melancólicas, falam de um tempo pretérito, é também, em um movimento paradoxal, um fator propulsor de redesenvolvimento da região do Meatpacking District, nas bordas do West Village, ao lado de outras atrações turísticas como o Museu Whitney e o Parque High Line.

Na busca por enfrentar as questões postas por esses dois projetos de arte aqui analisados, a investigação se debruçou sobre uma extensa literatura que visa enfrentar a presença e as respostas das artes diante de processos de requalificação urbana. Da mesma maneira, buscou-se uma leitura ampliada e aprofundada sobre as duas obras específicas, além de observações in loco da obra de David Hammons instalada em Nova York. Neste sentido, o artigo busca demonstrar que o fenômeno da gentrificação [1] não é um fenômeno recente, uma vez que o projeto de Guga Ferraz faz referência a processos urbanos na cidade do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século passado, muito antes de o termo gentrificação ser cunhado por Glass (1964), (2) que se espalha por diversas cidades na contemporaneidade, como exemplificado pelo projeto de David Hammons para Nova York, cidade absolutamente gentrificada e turistificada como outras tantas cidades do mundo.

Cabe ressaltar que, em sua constituição político-conceitual, os projetos analisados revelam condições bastante distintas, a começar pelo aspecto efêmero e crítico do projeto de Ferraz em oposição à utilização de material de alta tecnologia, resistente às condições metereológicas, na recuperação melancólica do armazém no projeto de Hammons.

O artigo se organiza em três partes, sendo a primeira dedicada a uma articulação teórica que, amparada na história das cidades e do urbanismo crítico, visa avançar na tentativa de uma melhor compreensão das transformações das cidades modernas e contemporâneas sob a égide do neoliberalismo. Na segunda parte, o artigo se dedica a estudar o projeto de arte de Guga Ferraz à luz das transformações atuais e pretéritas na cidade do Rio de Janeiro, em nome de uma modernidade sempre perseguida. A terceira parte do artigo apresenta reflexões em torno da obra de David Hammons assentada em Manhattan, nas margens do rio Hudson, e de sua relação com os processos de transformações urbanísticas e de gentrificação na cidade. A obra de Hammons faz referência àquela de Gordon Matta-Clark que, em 1975, recortou paredes e piso do velho armazém antes que a edificação fosse suprimida da paisagem.

2. Transformações em moto-contínuo nas cidades

As cidades têm atravessado, ao longo de suas histórias, permanentes processos de transformações, nos quais tentam se ajustar às novas necessidades citadinas, quando não são simplesmente induzidos e pontificados ao sabor dos interesses especulativos do capital. Assim, as cidades vão sendo redesenhadas, reconstruídas, reconfiguradas, eventualmente desfiguradas ao revelarem semblantes em que não se reconhece mais o que foram. Isso pode transformar as relações entre passado, presente, história e memória em conflitos de difícil conciliação. São camadas que vão sendo sobrepostas no tecido urbano com novos prédios, novas avenidas, novos bairros em nome da evolução das cidades. Desse modo, vão-se aterrando, soterrando ou removendo os traços das “cidades anteriores”, sem que permaneçam traços das cidades que foram. Em outras situações, tempos diferentes parecem encontrar alguma forma de convivência no tecido urbano, reconfigurando essas cidades como palimpsestos.

No campo dos estudos urbanos, que aqui nos interessam em particular, “o tecido urbano se torna o suporte sobre o qual sucessivas ondas de agentes constroem, demolem e reconstroem seus ambientes” (Fowden et al., 2022, p. 5). Assim, os autores lembram que nos palimpsestos textuais,

“[...] mesmo que o texto anterior permaneça, até certo ponto, exposto, o novo texto (ou textos) do palimpsesto geralmente não tem relação com o texto antigo. [Neste sentido,] a característica essencial de um palimpsesto é a ausência de correspondência entre o texto original e a reinscrição”

(Fowden et al., 2022, p. 11-12).

Por sua vez, Andreas Huyssen, ao se afastar das leituras conciliatórias entre passado, presente e futuro na evolução das cidades, afirma que, “[...] como crítico literário, sou naturalmente atraído pela noção da cidade como texto, de ler uma cidade como um conjunto de sinais” (Huyssen, 2003, p. 50); entretanto, o autor sugere que “o custo do progresso foi a destruição de maneiras antigas de viver e de estar no mundo. [...] E a destruição do passado trouxe o esquecimento” (Huyssen, 2003, p. 2).

O apagamento apontado por Huyssen é facilmente constatado na evolução urbana das cidades brasileiras, nas quais se busca preservar traços do passado apenas em situações de interesse especulativo. Nessas ocasiões, os interesses de acumulação do capital centradas no urbanismo neoliberal (Theodore et al., 2009; Smith, 2005, 1996) se articulam em alinhamento com a preservação do patrimônio cultural, da história e memória no desenvolvimento de estratégias de marketing em prol do mercado imobiliário especulativo.

É o que revelam as restaurações do patrimônio histórico trombeteadas pelo projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, no qual são ressaltadas as reminiscências da chegada e da presença na região de africanos escravizados (Cais do Valongo, Cemitério dos Pretos Novos, Pedra do Sal, entre outros). A restauração dos monumentos na região portuária, para além do reconhecimento e da valorização identitária de segmentos negligenciadas na história brasileira, cumpre a função de impulsionar empreendimentos bilionários que aproximam, em parceria, a Prefeitura da cidade e empresas privadas. Esses investimentos apontam, em convergência, para a valorização do solo e para a consequente mudança no perfil sociocultural da ocupação habitacional da região, atualizando o rent gap de Neil Smith.

Nas respostas a processos de remodelação das cidades oferecidas pelos projetos dos dois artistas, o apagamento se apresenta de maneiras diferentes; no caso do projeto de Guga Ferraz, que redesenhou, com toneladas de sal grosso, as linhas do mar em um extenso trecho central do Rio de Janeiro, a evolução urbana da cidade parece jogar no plano do inverossímil a assunção de que, ali, nas bordas da igreja de Santa Luzia, o mar batia. Já o projeto de David Hammons para a cidade de Nova York, apresentado em caráter permanente na paisagem, visa recuperar o desenho, em seu formato mais esquemático e desidratado, o que foi a saudação ao sol nos finais de tarde do Píer 52, às margens do rio Hudson, afirmando, em sua melancolia, o que se perdeu no tempo, mesmo que o projeto tenha sido construído sobre as bases que remanescem semissubmersas na espessura do leito do rio.

3. O mar desapareceu na paisagem da cidade

Em tom reflexivo e com certa perplexidade, o artista Guga Ferraz indaga: “Você sabia que o mar chegava até aqui?”; “Como pode[ia] o mar chegar até aqui?” (Ferraz et al., 2013, p. 32), estando agora tão distante. São camadas de tempos e de sucessivos aterros que fizeram o mar recuar, aterros que criaram, por exemplo, em pleno Centro do Rio, a 1.500 metros do antigo Paço Imperial, o aeroporto Santos Dumont ainda na década de 1930. O arrasamento do Morro do Castelo nos anos 1920 despejou pedras, terra e entulhos no aterramento da desaparecida praia de Santa Luzia, completando a Avenida Beira-Mar à esquerda do obelisco na direção de quem seguia da Avenida Central para a Zona Sul da cidade. Três décadas mais tarde, o desmonte do Morro de Santo Antonio forneceu o material para que se ampliasse a faixa de terra da Avenida Beira-Mar, o que fez o mar recuar, de novo, para a criação do Aterro do Flamengo. Inaugurado em outubro de 1965, o novo aterro abria vias expressas que, mais uma vez, favoreciam o deslocamento e a ligação entre o Centro e a Zona Sul da cidade, uma obsessão das administrações municipais no sentido de contemplar demandas das camadas mais abastadas da população carioca, permitindo que setores do mercado imobiliário capitalizassem “o status que a ideologia do ‘morar à beira mar’ oferecia a quem aí residia” (Abreu, 1997, p. 112).

O artista Guga Ferraz pergunta com espanto – “como podia o mar chegar até aqui?”; afinal, onde há pouco mais de um século se tinha o mar batendo em nossos pés, hoje não mais se vê o mar; “eu imagino a violência que não foi com a cidade a derrubada do Morro do Castelo e empurrar o mar para lá” (Ferraz et al., 2013, p. 32); ainda mais quando se reconhece que esse recuo do mar se deu (1) para preparar a cidade, capital do país, para as comemorações do primeiro centenário da Independência do Brasil, (2) de maneira a que o país fosse visto como merecedor de figurar entre as nações tidas como civilizadas, (3) de maneira a dar seguimento às reformas urbanas de caráter civilizatório introduzidas por Pereira Passos na primeira década do século XX, e (4) para extirpar dos arredores (dos fundos, para ser mais preciso) da via mais dourada da cidade à época, a Avenida Central, a presença de “gentes pobres” – os castelenses – que, em residências precárias, habitavam as encostas do Morro do Castelo, núcleo primeiro da ocupação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Quase 100 anos depois, Guga Ferraz respondeu ao arrasamento do Morro do Castelo e o aterramento da praia de Santa Luzia com a recuperação da antiga linha do mar, desenhada agora com sal grosso. Questionado se o uso do sal grosso à porta da igreja de Santa Luzia faria alguma referência à cultura religiosa, o artista afirmou que “o mar chegou até aqui e foi embora, e o que ele deixou... o rastro dele foi o sal seco... isso tem a ver com o mar estar ressentido”, como que a dizer “isso aqui era meu” (Ferraz et al., 2013, p. 29). Foram usados muitos quilos de sal grosso no entorno do entroncamento das avenidas Antonio Carlos, Wilson e rua de Santa Luzia. Com o sal grosso espalhado por onde outrora o mar encontrava a cidade, o artista recuperou a linha do mar de ontem nas ruas da cidade de hoje, em um trecho longo do asfalto onde até a década de 1920 era mar. Mar e praia desapareceram; o primeiro, de nossa visão, já a praia se foi para sempre.

Figure 3. Guga Ferraz, Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia (2010). Vista área da intervenção no entorno da igreja de Santa Luiza, 2010. Foto: Marcio Arqueiro. Fonte: Arte & Ensaios, n. 26, jun. 2013. https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/download/49727/27058.

O projeto/intervenção urbana Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia (2010, Fig. 3) integrou a exposição Projetos (In)Provados (1), organizada por Sonia Salcedo del Castillo para a Caixa Cultural do Rio de Janeiro (Castillo, 2010): “para a realização de seu trabalho, aproximadamente 5 metros cúbicosde sal grosso serão [foram] transportados de caminhões e depositados no local, no domingo anterior ao da semana de inauguração [da mostra], no dia 22 de fevereiro de 2010” (Castillo, 2015, p. 94).

Em entrevista, Guga Ferraz alerta, entretanto, que “Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia é um projeto que não é só um trabalho, ele continua... O projeto ideal seria construir uma linha de sal grosso de quilômetros” (Ferraz et al., 2013, p. 31). Com isso, artista parecia antecipar outra versão da intervenção/performance/obra que realizou em julho de 2014, integrando um projeto da Funarte intitulado Grande Área [2] na região do Passeio Público, ponto em que o Centro da cidade começa a adentrar o primeiro bairro da Zona Sul, a Glória.

Com essas intervenções realizadas, que podem ser mais, recorrendo a toneladas de sal grosso deitadas sobre o piso asfáltico da cidade, Guga Ferraz reflete sobre a ocupação urbana da cidade do Rio de Janeiro, seu modelo de desenvolvimento e de exclusão, resultando em desigualdades, cicatrizes e ausências que têm sido perpetradas ao longo da história da cidade.

4. O river está preso no passado

Antes da abertura oficial da nova sede do Whitney Museum of American Art no Meatpacking District de Nova York em maio de 2015, o artista David Hammons visitou às novas instalações do museu ciceroneado pelo diretor Adam D. Weinberg. No percurso entre galerias, escadas e halls, sempre que podia, Hammons apontava os olhos para as grandes janelas do novo edifício em direção à paisagem do Hudson River. Diante daquele olhar insistente, Weinberg informou o artista que, justamente naquele ponto da beira-rio, Gordon Matta Clark (1942-1978) havia realizado uma de suas obras mais icônicas: Day’s End. Passados alguns dias desde a visita, Hammons enviou ao museu um desenho/projeto que propunha o erguimento de um monumento em homenagem a Gordon Matta-Clark (Whitney, 2021). A proposta de Hammons previa a instalação de sua obra no mesmo ponto do rio – Píer 52 – que fora ocupado pelo armazém da intervenção, em 1975, do artista falecido três anos mais tarde. A intervenção de Matta-Clark consistiu na incisão de cinco recortes gigantescos nas paredes e estruturas do velho armazém, já abandonado, que abriam à visão o céu, as águas do rio e a paisagem urbana de Nova York e da cidade vizinha, Hoboken.

Figure 4. David Hammons, Day’sEnd (2014). grafite sobre papel, 21,6 × 27,9 cm. Whitney Museum of American Art. https://whitney.org/exhibitions/david-hammons-days-end?section=1#exhibition-feature.

O desenho de David Hammons não deixa dúvida quanto à homenagem que propunha acolher ao inserir, em sua parte inferior, a inscrição manuscrita: “Gordon Matta-Clark Monument Pier 52” (Fig. 4). O desenho, em uma perspectiva que aponta para as profundidades do rio, destaca o quase-nada que sobrou do armazém: apenas algumas de suas estacas de sustentação, fincadas no leito do rio e aflorando levemente acima das águas. O local onde a obra definitiva de David Hammons foi instalada, em caráter permanente, no Hudson River Park em 2021, se mantém separada da nova sede do Whitney Museum por algumas dezenas de metros, uma via expressa e sinais de trânsito alongados que privilegiam o fluxo dos automóveis.

A obra de Hammons, em suas linhas elegantes e esqueléticas, parece ser a materialização de um projeto, ainda inconcluso, recém-liberado da prancheta de um arquiteto. Para Ben Okri, poeta e romancista, trata-se de “um trabalho que está lá e, ao mesmo tempo, não está lá. É sobre comunidade. É um diálogo com a história da arte, é um diálogo com Nova York, é um diálogo entre o mar [rio] e a terra. É escultural, é arquitetônico, é desenho” (Whitney, 2021).

Na realização da obra de Hammons foram empregados recursos de alta tecnologia, com partes da instalação metálica sendo produzidas na América do Sul, Europa e Canadá “com um tipo de aço muito particular, com uma liga muito especial, para que não viesse a ser destruído [pela exposição ao tempo]. Cada decisão tem um propósito funcional, cada decisão tem um propósito estético”, nas palavras de Adam D. Weinberg (Whitney, 2021). As conexões em aço fundido empregaram aço inoxidável super-duplex, metal extremamente resistente à corrosão, de maneira a atender tanto os requisitos estruturais quanto estéticos da obra (Binder et al., 2020).

Nesse aspecto, a estrutura elegante e precisa da obra de Hammons, erguida com a vocação à permanência em seu site definitivo à beira do rio, onde pode ser apreciado de dentro do Whitney, parece se descolar por inteiro da precariedade estampada e visível nos cortes pleno de riscos de Matta-Clark no antigo armazém. Algo como se o próprio desenho/projeto de Hammons, expresso na qualidade sensível do grafite a arranhar o branco do papel, não encontrasse ressonância ou coerência naquelas vigas e hastes, ao mesmo tempo, firmes, resistentes e elegantes. Ou como se quisesse apenas nos lembrar que os tempos são outros e, o que passou, no passado ficou (Fig. 5).

Figure 5. David Hammons, Day’s End (2014-2021). Foto do autor, abril de 2023.

No passado ficou o momento em que Matta-Clark fez incisões no antigo armazém. Um momento em que o Píer 52 havia sido ocupado pela comunidade queer do West Village e da cidade, que se reunia no píer em torno da armazém para saudar a vida, a alegria de viver e de amar em liberdade, vivendo uma vida comunitária que tentava se resguardar e se proteger da violência a que se expunha no cotidiano da cidade.

A obra Day’s End de Hammons, em sua melancolia cinzenta refletida nas sofisticadas estruturas de aço, reproduz, em uma versão desidratada pela espessura da história e das transformações urbano-sociais de uma cidade that neversleeps, aquilo que Nova York perdeu, aquilo que ficou para trás. Day’sEnd parece replicar, em seus vazados e vazios de gentes, a ideologia neoliberal que domina o cotidiano da cidade de Nova York, onde tudo, absolutamente tudo, é otimizado para o seu máximo rendimento. Uma cidade que aproveita cada canto abandonado, mesmo que seja sobre o rio, para criar uma situação que gere dividendos em seu continuado processo de turistificação; é o caso do High Line Park, que tem sua entrada sul ao lado do Whitney Museum. Nova York, talvez mais que nunca, é hoje a meca do capital e do turismo, ou do capital do turismo.

Para além das conexões mais diretas entre as duas Day’s End, a obra de Hammons revela o que foi suprimido pelo tempo que passou, em uma cidade que parece perdida em sucessivas ondas e continuados processos de gentrificação e de turistificação (Gladstone & Fainstein, 2001; Quintana & Batel, 2022; Sequera & Nofre, 2018). Com isso, Nova York perdeu qualquer sentido comunitário e mesmo o seu sentido de cidade. As forças do urbanismo neoliberal encontram na Nova York de hoje “a sua mais completa tradução” [3]. Uma cidade que recentemente substituiu a campanha “I love NY”, criada na década de 1970 pelo legendário Milton Glaser (Barron, 2023) por outra que agora diz “We love NY”, sem que se saiba exatamente quem está representado em “we”.

5. Considerações finais

No enfrentamento dos processos incontroláveis do desenvolvimento urbano de duas cidades americanas – Rio de Janeiro e Nova York –, Guga Ferraz e David Hammons, cada qual à sua maneira, em respeito às diferentes sensibilidades e aos modos de operacionalização de seus processos criativos, criaram obras-projetos que intervieram nos espaços públicos dessas cidades. Os dois projetos oscilam entre a efemeridade do sal grosso esparramados pelo asfalto e a permanência do aço de alta tecnologia, as obras de Ferraz e Hammons sinalizam, dentro dos limites da arte, para a necessidade de as cidades não virarem as costas para suas histórias e para sua memória.

Entretanto, essa parece ser uma guerra perdida. As grandes cidades contemporâneas, impulsionadas pelas forças neoliberais e pelos processos de gentrificação e de turistificação, parecem seguir em frente, derrubando o que eventualmente encontram pela frente. Na mesma medida em que os dois casos estudados revelam sua relevância, no campo próprio da arte, em posições político-críticas bastante distintas, revelam igualmente sua irrelevância e suas limitações no enfrentamento das questões que orientaram as escolhas dos artistas: o crescimento descontrolado das cidades contemporâneas e os processos de apagamento da história e da memória.

Financiamento

Esta pesquisa foi parcialmente financiada com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnólogico (CNPq), através do Programa de Bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ), Processo: 313342/2021-0.

Notas

[1] Outros dez artistas, além de Guga Ferraz, participaram do projeto e exposição desenvolvidos por Sonia Salcedo del Castillo para a Caixa Cultural (Rio de Janeiro). A exposição Projetos (In)Provados foi realizada entre 1º de março e 18 de abril de 2010.

[2] O projeto Grande Área 2014, com curadoria de Xico Chaves e Luiza Interlenghi, contou com a participação de artistas visuais brasileiros que desenvolveram suas ações em espaços públicos de seis capitais brasileiras – São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Brasília, por ocasião da Copa do Mundo FIFA, realizada no país em 2014.

[3] Na expressão de Caetano Veloso a respeito de outra grande metrópole das Américas – São Paulo.

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How to Cite
Oliveira, L. S. de. (2024). What is achieved, what is lost: Public art and gentrification in two American cities. Convergences - Journal of Research and Arts Education, 17(34), 145–155. https://doi.org/10.53681/c1514225187514391s.34.233
Section
Review Papers

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